Essa postagem
que publico hoje é a primeira que complementa um texto publicado em 29 de
setembro de 2015 (Um treino de 13 km em jejum e sem água!) e em breve publicarei
outra que irá tratar da hidratação durante o exercício. Nessa postagem vocês
irão ler sobre as evidências científicas relacionadas com a recomendação de que
devemos ingerir 2 litros de água por dia.
Em 2007 o Bristish Medical Journal publicou um
artigo escrito por Rachel Vreeman e Aaron Carroll com o título de Medical Myths
[1]. Nesse artigo eles falam sobre afirmações que muitas vezes são consideradas
verdadeiras, mas que não possuem embasamento científico. Entre elas encontramos
as afirmações de que “o cabelo e as unhas continuam a crescer após a morte” ou
“comer peru faz a pessoa ficar sonolenta”. Mas um dos mitos citados que pode
gerar certa controvérsia é de que “devemos tomar cerca de 2 litros de água por
dia”.
O crédito dessa recomendação pode ser dado ao
famoso nutricionista americano Fredrick
J. Stare que faleceu em 2002. Em um livro escrito em 1974 (Nutrition
for Good Health) na página 175 o autor escreve: “Quanto de água é necessário a cada dia? Geralmente isso é bem regulado
por diversos mecanismos fisiológicos, mas para o adulto médio, por volta de 6 a
8 copos a cada 24 horas e parte desta pode ser na forma de café, chá, leite,
refrigerantes, cerveja, etc. Também frutas e vegetais são boas fontes de água.”
Um trabalho publicado em 2002 [2] teve como
objetivo encontrar a origem e verificar as evidências científicas dessa
recomendação. O trabalho incluiu meios eletrônicos de pesquisa, a literatura mais
antiga que não está coberta pelas bases de dados eletrônicas e também a consulta
de nutricionistas especializados no campo da sede e ingestão de líquidos. O
autor conclui que não foram encontrados estudos científicos que apoiem essa
recomendação e as pesquisas sobre alimentação e ingestão de líquidos que
envolveram adultos de ambos os sexos sugerem que essa quantidade de água não é necessária
quando considerando pessoas saudáveis.
Uma conclusão como essa foi obtida por Ronni Wolfi
e seus colegas em 2010 [3] quando através de uma revisão da literatura não
encontraram fundamentação científica para a ingestão de água de 2 litros por dia.
Estes autores também concluíram que a ingestão de uma quantidade menor do que a
recomendada não trás prejuízos.
Um estudo observacional [4] que utilizou um
questionário com ferramenta de avaliação para investigar a ingestão de líquidos
de 3858 homens e mulheres com idade média de 49 anos mostrou que a ingestão
superior a 3 litros de água por dia não está associada com a diminuição do
risco de morte assim como o risco de morte não aumenta quando a ingestão é
menor do que 2 litros/dia. Este trabalho também concluiu que o aumento da
ingestão de líquidos de 250 ml ao dia não melhora a função renal ao longo de 10
anos. Porém outros trabalhos observacionais demonstraram existir uma correlação
entre o aumento da ingestão de líquidos e a diminuição do risco de doença
arterial coronariana [5] e diminuição do risco de câncer de bexiga [6].
Todos os trabalhos observacionais, como os citados
no parágrafo anterior, demonstram uma correlação entre duas variáveis e não é
possível afirmar que exista uma associação de causa e efeito. Por sua vez os
estudos experimentais são mais indicados para avaliar a relação de causa e
efeito. Em 2006 foi investigado se o aumento da ingestão diária de líquidos
iria gerar algum efeito positivo ou negativo sobre homens saudáveis entre 55 e
75 anos [7]. As pessoas avaliadas foram divididas em dois grupos (uma das
características de um estudo experimental), um deles foi orientado a aumentar
sua ingestão diária de água em 1,5 litros e um segundo grupo manteve sua
ingestão. Após 6 meses de estudo os resultados não demonstraram nenhum efeito
sobre a função renal, sódio sanguíneo, pressão arterial e qualidade de vida.
As evidências demonstram que na presença de algumas
doenças o aumento da ingestão de líquidos pode ser positivo. O aumento da ingestão
de líquidos em conjunto com outras abordagens é capaz de reduzir o risco de
ocorrência de pedras nos rins em pessoas com histórico dessa doença [8]. O
aumento da ingestão de líquidos de forma isolada parece ser benéfico para
indivíduos que tenham tido somente um episódio anterior de pedras nos rins, já
para aqueles com um número superior a esse de crises anteriores o aumento da
ingestão de líquidos somente é positivo se for feito em combinação com o uso de
medicamentos específicos [9].
Considerando que a água pode representar até 70% do
nosso peso corporal e todos os nossos tecidos possuem água na sua composição (a
água representa 80% do peso dos nossos músculos e 75% do peso do nosso cérebro)
parece lógico dizermos que precisamos de água para manutenção de nossas funções
fisiológicas e para nossa saúde. Além dos benefícios relacionados com algumas
doenças como problemas cardiovasculares, câncer e pedras nos rins a ingestão de
água pode estar relacionada com outros possíveis efeitos benefícios, um deles é
o emagrecimento. Isto pode ser explicado pelo fato de que um dos determinantes
da saciedade é o volume do alimento ingerido [10] e as refeições com maior
volume de água, acrescida aos alimentos (como uma sopa de arroz e frango) ou a
ingerida em separado (como acompanhamento de arroz e frango), contribui para o
aumento do volume do alimento ingerido [11]. A ingestão de água antes de uma
refeição pode contribuir para o aumento da saciedade durante a refeição, isto
foi demonstrado em 1993 [12] quando a ingestão de 2 copos de água previamente
ao café da manhã aumentou a sensação de saciedade durante a refeição.
Considerando as informações dos trabalhos
observacionais e experimentais aqui citados podemos concluir que a recomendação
de que devemos ingerir 2 litros de água apresenta influência positiva sobre
alguns aspectos específicos da saúde em situações patológicas quando combinadas
com medicações. Mas de forma geral não esta ligada a mudanças efetivas na
qualidade de vida e na mortalidade.
A hidratação também é considerada importante
durante o exercício, principalmente nas atividades de resistência como a
corrida. Nesse ponto específico podemos encontrar recomendações como (link):
Antes: 2 horas antes do treino ou da prova, beba
aproximadamente 500ml.
Durante: a cada 15-20 minutos beba de 120 a 200ml.
Depois: após o treino ou prova, beba ao menos
500ml.
Considerando essa recomendação e imaginando que uma
pessoa irá correr 1 hora, em um período de 3 horas (2 horas antes e mais 1 hora
de treino ou prova) essa pessoa deverá ingerir pelo menos 1,5 litros de água. Considerando
que ela também ingerisse os 2 litros recomendados diariamente, esta pessoa iria
ingerir cerca de 3,5 litros de água.
Uma pergunta importante cabe aqui, se a ingestão de
água ou líquidos for menor prejuízos podem ocorrer durante o exercício? Uma
tentativa de resposta para essa pergunta será o tema de uma nova postagem que
terá o título de Hidratação Durante o Exercício e logo será publicada.
Grande abraço!
Carlinhos
treinamentocarlinhos@gmail.com
Referências
- Vreeman RC, Carroll AE. 2007. Medical Myths.
- Valtin H. 2002. “Drink at least eight glasses of water a day.” Really? Is there scientific evidence for “8 × 8”?
- Wolfi R, et al. 2010. Nutrition and water: drinking eight glasses of water a day ensures proper skin hydration—myth or reality?
- Palmer SC, et al. 2013. Fluid intake and all-cause mortality, cardiovascular mortality and kidney function: a population-based longitudinal cohort study.
- Chan J, et al. 2002. Water, Other Fluids, and Fatal Coronary Heart Disease - The Adventist Health Study.
- Michaud DS. 1999. Fluid Intake and the Risk of Bladder Cancer in Men.
- Spigt MG, et al. 2006. The effects of 6 months of increased water intake on blood sodium, glomerular filtration rate, blood pressure, and quality of life in elderly (aged 55-75) men.
- Howard AF, et al. 2012. Recurrent Nephrolithiasis in Adults - Comparative Effectiveness of Preventive Medical Strategies.
- Fink HA, et al. 2013. Medical management to prevent recurrent nephrolithiasis in adults: a systematic review for an American College of Physicians Clinical Guideline.
- Rolls BJ, et al. 1998. Volume of food consumed affects satiety in men.
- Rolls BJ, et al. 1999. Water incorporated into a food but not served with a food decreases energy intake in lean women.
- Lappalainen R, et al. 1993. Drinking water with a meal: a simple method of coping with feelings of hunger, satiety and desire to eat.
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