terça-feira, 25 de novembro de 2014

30 graus...correr ao meio-dia...tu é louco!?

Quando digo para as pessoas que muitas vezes faço meus treinos longos de corrida ao meio-dia, independentemente da estação do ano, quase todos me dizem que isso é loucura, ainda mais no verão com as temperaturas elevadas. 
Antes de vocês continuarem lendo essa postagem peço que assistam o vídeo realizado pela BBC que aparece a seguir.
* se você não consegue assistir o vídeo clique aqui.

Já escrevi muitas vezes que a elaboração dos meus treinamentos leva em consideração a abordagem evolutiva [para saber mais clique aqui], acredito que isso seja importante pois as demandas físicas de nossos ancestrais modelaram nosso genoma e portanto nossa capacidade de responder melhor aos estímulos de treinamento independentemente das demandas fisiológicas de determinado esporte ou competição. 

A corrida de longa duração é um recurso derivado do gênero Homo e pode ter sido fundamental para a evolução das características anatômicas e fisiológicas do corpo humano. Uma das hipóteses para explicar o motivo pela qual teríamos iniciado esse tipo de atividade física durante nossa evolução é a caça persistência [como aparece no vídeo acima]. 

Considera-se que o fator que permite esse tipo de caça é nossa capacidade manter a temperatura corporal e consequentemente dá a nossa espécie uma grande capacidade para corridas de longa duração. Capacidade essa que pode ter tido um valor adaptativo extremamente significativo, permitindo-nos fazer uso da caçada persistente, principalmente antes de domesticação dos cães [1].

Se você procurar dicas de como treinar no calor, um dos conselhos mais repetidos é que você deve evitar o sol do meio-dia, deve escolher correr o mais cedo possível ou o mais tarde, procurando as menores temperaturas possíveis [2-3-4-5]. Essa recomendação está baseada no fato de que a realização de exercícios em climas quentes pode levar ao surgimento de cãibras musculares, náuseas ou vômitos, fraqueza, dor de cabeça ou tontura [5].
A recomendação para realização de exercícios pela manhã parece ter embasamento na literatura científica, um trabalho realizado em 2009 [6] demonstrou que o tempo de exaustão em ciclistas que se exercitaram a 65% da sua capacidade máxima foi maior quando a sessão de exercício foi realizada as 06:45 da manhã que do no início da, as 18:45. Essa diminuição do desempenho parece estar associada com uma menor temperatura corporal no inicio da manhã em relação ao inicio do dia [6-7].
Mesmo considerando as recomendações de que devemos evitar as sessões de treinamento ao meio-dia, principalmente no verão, parece que do ponto de vista evolutivo existem razões que suportam a realização dessas atividades quando necessário.
Atualmente a caçada persistente continua com uma forma de obtenção de alimentos no deserto de Klahari na Africa, essa é uma região semi-árida com 900.000 km². Nesse local as caçadas são realizadas em temperaturas máximas que variam entre 39-42 graus centígrados, elas envolvem 3 ou 4 caçadores que tomam o máximo possível de água no inicio da caçada e mantem um ritmo de corrida e caminhada em busca da trilha do animal escolhido até que ele seja vencido pela fadiga [1].
Segundo um trabalho publicada por Liebenberg em 2006 [1] essas caçadas podem durar de duas até mais de seis horas e os caçadores atingem distâncias que variam de 17 até 35 km, mantendo velocidades médias entre 5 e 10 km/h. No Kalahari o animal que normalmente é a preso se chama Kudu que aparece na foto a seguir.
kudu bull,greater kudu,kudu hunting
O que faz de nós seres humanos os animais mais preparados para atividades de longa duração no calor é o nosso sofisticado sistema de controle da temperatura corporal. Essa maior capacidade de controle da temperatura corporal esta relacionada com aspectos como os que seguem [8]:

  • A maioria dos mamíferos perde calor através da respiração, sistema que está acoplado ao ciclo de respiração e ao funcionamento do aparelho locomotor. Esta interdependência pode limitar a eficácia da respiração como um meio de dissipação de calor.
  • Nos seres humanos a transpiração não é dependente de respiração, o que pode ser mais compatível com o funcionamento de um mecanismo termorregulador. 
  • A falta de pelos no corpo do homem aumenta a condução térmica durante o exercício, uma vez que facilita a convecção na superfície da pele.

Apesar de utilizarmos a transpiração e a convecção para a dissipação do calor, nós seres humanos também utilizamos a respiração como parte de do sistema de eliminação do calor. Nós utilizamos a respiração bucal durante o exercício o que gera menor resistência respiratória do que a respiração nasal [9] e também ajuda a eliminação de calor [10].

Em relação aos quadrúpedes, nós  bípedes apresentamos uma redução dramática na exposição à radiação solar direta e vantagens adicionais geradas pela maior distribuição das superfícies do corpo [11]. As velocidades do vento são maiores e as temperaturas do ar menores quanto maior for a distância do solo, esse fatores aumentam a taxa de dissipação do calor por convecção de um bípede em comparação com um quadrúpede [11]. 

Outro ponto importante da nossa capacidade de se exercitar no calor é a manutenção da temperatura cerebral. As alterações circulatórias geradas pela adoção da posição bípede, além de contribuírem para o aumento do cérebro [12] também torna eficiente a dissipação do calor do sangue arterial durante seu trajeto até o cérebro [13].

Considerando todos esses aspectos evolutivos podemos inferir que a realização de sessões de treinamento de corrida em temperaturas elevadas podem não ser consideradas "uma loucura". Mas é importante frisar que para isso alguns pontos devem ser observados.

1) Como relatado por Liebenger [1] as velocidades médias utilizadas durante as caçadas no Kalhari são de no máximo 10km/h. Isso pode significar que uma redução da intensidade de treinamento seja necessária para que as sessões sejam seguras.
2) É fundamental uma hidratação adequada.
3) Proteção adequada em relação a exposição ao sol.


Carlinhos
treinamentocarlinhos@gmai.com 

Referências
[8]http://www.jstor.org/discover/10.2307/2742907?uid=2134&uid=2&uid=70&uid=4&sid=21104650098181
[9]http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1281569/
[10]http://www.nature.com/nature/journal/v432/n7015/full/nature03052.html
[11]http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/004724849190002D
[12]http://journals.cambridge.org/action/displayAbstract?fromPage=online&aid=7238920&fulltextType=RA&fileId=S0140525X00078973
[13]http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC1281569/pdf/jphysiol00755-0260.pdf

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