Na primeira
parte dessa série de postagens escrevi sobre a importância de considerarmos
uma abordagem
evolutiva quando desejamos planejar um programa de treinamento que tenha
como objetivo o condicionamento físico e a saúde. Na segunda parte meu objetivo
é caracterizar as atividades diárias de sobrevivência realizadas pelos nossos
ancestrais, o que será importante para que nas postagens seguintes dessa série
possamos entender quais as características de um programa de treinamento
planejado com base em abordagem evolutiva.
Atividade Física e Sobrevivência
Nos dias de hoje a produção de
alimentos é um grande processo industrial o que nos permite irmos até o
supermercado e sem nenhum tipo de esforço físico obtenhamos alimentos. Isso é completamente
diferente do que acontecia antes do surgimento de agricultura e até mesmo antes
da Revolução Industrial, onde o gasto calórico tinha uma relação intrínseca com
a ingestão calórica [1]. Estima-se que os primeiros Homo Sapiens tivessem um
gasto calórico diário de aproximadamente 5000 kcal/dia, muito semelhante aos povos
caçadores coletores atuais, porém atualmente esse gasto calórico varia entre
2000 kcal/dia e 2500 kcal/dia [2].
Podemos dizer que durante a maior parte da nossa evolução o gasto
calórico dos nossos ancestrais tinha como objetivo garantir a ingestão
calórica, ou seja, o gasto de energia se destinava principalmente a obtenção de
alimentos. A disponibilidade de alimentos também variava conforme a época do
ano, obrigando que nossos ancestrais se movessem de um local para o outro em
busca de alimentos. Ao contrário de hoje
eles se moviam para comer e não comiam para se mover.
Existe a grande possibilidade de
que as atividades de sobrevivência realizadas pelos nossos ancestrais na maior
parte do tempo tenham sido de baixa intensidade e executadas diariamente. Dentre
essas atividades diárias, além da caça de grandes animais, tínhamos as
interações sociais, danças, construção de abrigo, produção roupas, coleta de
plantas silvestres, grãos, frutas e outros vegetais ou ainda a fabricação de
ferramentas [3]. A caça podia ser realizada através de atividades de baixa
intensidade e longa duração, chamadas de caçada persistente [4] ou uma
combinação de atividades de baixa intensidade com atividades intervaladas de
alta intensidade [5].
A observação de populações
caçador-coletoras atuais mostra que eles percorrem de 10-15 km por dia [3,4] e
é muito provável que isso reflita o que nossa espécie fazia no período
pré-agricultura, essa hipótese pode ser levantada quando analisamos o ambiente
onde os primeiros Homo Sapiens viviam. Estimativas arqueológicas [6] mostram
que a cerca de 6-7 milhões de anos atrás, em um período chamado de Mioceno
tardio, o ambiente nas bacias de Awash e Omo-Turkana (no leste da África, no continente
onde surgiram nossos primeiros ancestrais) eram regiões abertas com uma
cobertura de florestas equivalente a 40% da área total. Isso provavelmente
fazia com que esses indivíduos percorressem longas distâncias para obter
alimentos e outras matérias-primas.
Além da influência do ambiente
sobre o tipo de atividade física necessária para a sobrevivência é possível que
os alimentos disponíveis também tenham determinado qual o tipo predominante de
atividade física era realizada durante a pré-história. Nesse período nossa alimentação era composta
por grandes quantidades de energia proveniente de gordura animal [7, 8], fossem
eles terrestres ou aquáticos [9], e também de proteína [10]. A ingestão de
carboidratos dos nossos ancestrais do período paleolítico provavelmente era
semelhante à ingestão das populações caçadora-coletoras atuais, onde os
carboidratos são provenientes de frutas, vegetais frescos, raízes e tubérculos
[10].
Como nossa dieta pré-histórica
tinha uma quantidade de carboidrato limitada, não é possível esperar que
atividades aeróbicas intensas de maior duração (acima do limiar ventilatório ou
de lactato) fizessem parte da nossa atividade física necessária para a
sobrevivência. Já que esse tipo de exercício é limitado pela quantidade de
glicogênio muscular (que é forma com a glicose proveniente dos carboidratos é
armazenada nos nossos músculos), que por usa vez é limitada pela quantidade de
carboidratos da dieta [5]. Podemos então
inferir que as atividades aeróbicas de baixa intensidade, que usam
predominantemente gordura como fonte de energia, não eram limitadas pela nossa
dieta ancestral [11].
Parece que o
ambiente no qual nossa espécie evolui, sejam as características geográficas dos
locais que habitávamos ou os tipos de alimentos disponíveis, pode sustentar a
hipótese de que as atividades aeróbicas eram o tipo de atividade física
predominante nas nossas tarefas de sobrevivência. E isso pode ter feito com que
todo o gênero Homo, incluindo nós Homo Sapiens, tenha na capacidade de
exercícios de resistência/endurance uma característica adaptativa [12,13]. Em
2004 Bramble & Lieberman [12] descreveram uma série dessas adaptações, que
envolvem nosso gasto energético para caminhada e corrida, características
anatômicas dos ossos e tendões, nossa capacidade de estabilização corporal
durante o deslocamento e nossa eficiente regulação térmica.
Do ponto de
vista do gasto energético para a locomoção os seres humanos são mais eficientes
que outros animais, como os chimpanzés, isso acontece, pois os seres humanos
possuem tendões mais longos do que esses primatas e por isso podem gerar força
de forma mais econômica [14]. Nossas estruturas da coxa, perna e pés possuem
características elásticas que são importantes para conservação de energia
durante a caminhada e corrida [15], porém a características elásticas dessas
estruturas parecem ser mais importante para corrida do que para a caminhada
[16].
Outra
característica marcante dos seres humanos, quando comparados com outros
primatas, é o tamanho e a massa do pé. Os seres humanos têm pés e dedos menores
e o pé tem o peso proporcional em relação ao membro inferior menor do que os
primatas [12], o que é uma vantagem na corrida já que um menor peso da
extremidade do membro inferior gera um menor gasto energético para uma mesma
velocidade de corrida [17].
Nossa estrutura óssea também pode
ter sido moldada pela pratica da corrida durante a evolução, o ato de correr
pode gerar até duas vezes mais impacto sobre as articulações do que o
deslocamento caminhando [18]. Uma adaptação possível ao impacto da corrida que
o gênero Homo pode ter sofrido é possuir maior área articular na cabeça do
fêmur, joelho e articulação sacro-íliaca [12]. Outra característica óssea
significativa é a estrutura do osso de calcâneo, que apresenta maior área e maior
volume ósseo nos humanos modernos do que chimpanzés africanos e do que o Australopithecus Afarensis [19].
As estruturas de sustentação do
tronco e da cabeça dos seres humanos são muito mais eficientes do que as
estruturas de sustentação dos primatas [12]. Essa eficiência parece fundamental
para o deslocamento correndo, já que nessa situação adotamos uma posição inclinada
para frente, o que gera um pequeno desequilíbrio do centro de gravidade
ajudando no deslocamento.
Considerando que a caça era a
melhor fonte de ingestão de energia e nutrientes de qualidade, a maioria das
atividades habituais dos nossos antepassados foram provavelmente relacionadas
com essa tarefa. Mais especificamente, a caça poderia ser dividida em várias
atividades como procurar e perseguir animais (fosse caminhando e/ou correndo) e
depois carregar o animal abatido [20]. O ato de caçar, o carregamento da presa
juntamente com a necessidade de levantamento de pedras para outras atividades
diárias, mostra que além das atividades aeróbicas de baixa intensidade, as
atividades de nossos ancestrais incluíam atividades intervaladas de alta
intensidade como também o levantamento de pesos.
Esse padrão de atividades diárias
dos nossos ancestrais pode ser interpretado em termos de distribuição da
intensidade de forma polarizada, com a predominância de atividades de baixa
intensidade prolongadas intercaladas com atividades de potência em uma
sequência previsível na maior parte dos casos. Este perfil polarizado de física
atividade também pode ser determinado pelas limitações metabólicas associadas à
disponibilidade de alimentos naquele período.
Carlinhos
treinamentocarlinhos@gmail.com
Referências
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The
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[20] O'Keefe JH, et al. 2010. Organic
Fitness: Physical Activity Consistent with Our Hunter-Gatherer Heritage
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