segunda-feira, 28 de março de 2016

Restrição de carboidratos após o exercício

Introdução

Pense sobre sua experiência com exercícios. Digamos que você treine forte, com intensidade suficiente para esgotar de forma significativa suas reservas de glicogênio (forma pela qual os carboidratos são armazenados nos músculos). Seus músculos estão sem glicogênio, sensíveis aos efeitos da insulina (que entre outras funções estimula o armazenamento de glicogênio nos músculos) e “gritando” por algumas batatas para reabastecer suas reservas. O que você faz?

Para a maioria das pessoas a resposta seria comer essas batatas e reabastecer as reservas de glicogênio. E porque não? O período pós-treino é uma janela especial de oportunidades para comer um monte de carboidratos e dirigi-los para os lugares certos, com mínimo de insulina utilizada. Esses carboidratos não irão contribuir para o armazenamento de gordura. Eles irão direto para os músculos. Reabastecendo glicogênio dos seus músculos para que o exercício intenso possa ser repetido e colaborar para o seu programa de treinamento gere resultados positivos. Isso faz muito sentido.

Imagine o que aconteceria se você não comesse as batatas depois de um treino intenso? E se você abrir mão completamente dos carboidratos depois de um treino que gerou depleção de glicogênio? E se você fosse para a cama sem ingerir nenhuma quantidade de carboidratos no jantar? E se você fosse um atleta de elite e ignorasse os carboidratos?


Foi exatamente isso que uma equipe de pesquisadores franceses fez com um grupo de triatletas altamente treinados em um estudo divulgado alguns meses atrás com o seguinte título: Enhanced Endurance Performance by Periodization of Carbohydrate Intake: "Sleep Low" Strategy.

Eles exploraram os efeitos de um regime alimentar, onde os atletas após as sessões de treinamento passavam por uma abstinência de carboidratos no período da noite (sleep-low), sobre o desempenho em atividades de resistência. Foi um estudo muito interessante.

Em primeiro lugar, todos os atletas envolvidos eram altamente treinados, considerados triatletas de elite e não atletas amadores. Todos os atletas tinham uma experiência competitiva de mais de 2 anos e treinavam no mínimo 10 horas por semana. Eles foram divididos em dois grupos: um grupo controle e um grupo de "sleep-low". Após um período de três semanas de dieta e treinamento idênticos, a fase experimental foi iniciada. Ambos os grupos comeram a mesma quantidade total de carboidratos (6g/kg de peso corporal) por dia. O grupo de controle ingeriu a mesma quantidade de carboidratos em cada refeição. O grupo “sleep-down” ingeriu os carboidratos somente no café da manhã e no almoço. O treinamento foi idêntico para ambos os grupos durante as semanas de duração do estudo.

Na parte da tarde, eles realizaram as sessões de exercícios intervalados de alta intensidade (EIAI), que eram compostas por 8 × 5 minutos de bicicleta a 85% da potência aeróbica máxima (PAM) ou 6 × 5 minutos de corrida a 85% PAM (alternando a cada dia), com um minuto de intervalo entre cada série. Este treinamento de EIAI apresenta a capacidade de esgotar cerca 50% da  das reservas de glicogênio muscular [1]. Na parte da manhã, as sessões eram de trabalho aeróbico de baixa intensidade (TABI) antes do café, composta de uma hora de ciclismo a 65% PAM.

O grupo “sleep-down” comeu carboidratos no café da manhã e no almoço. Após a sessão de EIAI eles não ingeriram carboidratos (no jantar) até o almoço no dia seguinte após a sessão de TABI. O grupo controle ingeriu carboidratos no café da manhã, almoço e no jantar (após a sessão EIAI). Com objetivo de preservar a síntese proteica em ambos os grupos, os atletas ingeriram 15 gramas de proteína antes de dormir.

Depois de três semanas, ambos os grupos foram submetidos a testes submáximos e supra máximos, testes VO2max e um teste de 10km (para simular a etapa final de uma prova de triathlon). O grupo “sleep-low” realizou esses testes em um estado de baixa disponibilidade de glicogênio, enquanto o grupo de controle os realizou com grandes quantidades de glicogênio disponíveis.

O que aconteceu?

A eficiência submáxima (potência produzida/por calorias consumidas ao se exercitar em intensidade moderada) melhorou muito no grupo “sleep-low”. O grupo de controle teve um melhora muito pequena. Este é um marcador biológico importante para atletas de resistência. Se a eficiência submáxima é alta, é possível obter mais potência de cada passada ou ciclo de pedalada com menor consumo de energia. Isso significa que o "ritmo fácil" de um atleta com esse tipo de adaptação é mais rápido do que os outros atletas sem essas melhorias.

A capacidade supra máxima do grupo “sleep-low” também teve uma grande melhora. Eles foram capazes de manter 150% do seu VO2max por um período tempo cerca de 12-20% maior do que antes (52,7seg antes e 57,8seg depois). Ocorreu pouca melhora no grupo controle (57,8seg antes e 58,8seg depois).

No teste de 10km, o grupo “sleep-low” apresentou uma melhora de 3-5% nos seus tempos (40min23seg para 39min10seg). O grupo controle melhorou apenas 0,10% (41min26seg para 41min24seg).

Todos os atletas eram bastante magros ao começar o estudo e avaliar a composição corporal não era o propósito dos pesquisadores, mas o grupo “sleep-low” teve redução na gordura corporal. A peso de gordura corporal desse grupo diminui de 9,7kg para 8,8kg, enquanto no grupo controle manteve o peso de gordura corporal (8,9 kg antes e 8,6 kg).

Este foi um estudo onde os atletas do grupo "sleep-low" tinham carboidratos disponíveis para ingestão, mas somente o faziam no almoço. Quando realizavam sessões de EIAI estavam com suas reservas de glicogênio repletas, mas quando completavam as sessões de TABI estavam treinando com a gordura como substrato dominante. Eles não estavam em dieta cetogênica, mas rapidamente atingiam um estado cetogênico durante uma boa parte do dia. Eles esgotavam as reservas de glicogênio e não as reabasteciam após o treinamento intenso. 

As dietas não eram dietas ricas em carboidratos, elas eram dietas de distribuição “inteligente” de carboidratos, esgotando e reabastecendo suas reservas de glicogênio de forma a obrigar seu corpo a utilizar de forma predominante a gordura durante um bom tempo.

O que é verdadeiramente notável é que este foi um estudo de curto prazo, três semanas de condições experimentais foram o suficiente para os benefícios acontecerem. Eles não tiveram que passar seis meses em adaptação ou por um período de indução de cetose. O padrão de uso de substrato energético utilizado foi controlado através do período de ingestão de carboidratos. Isto é uma coisa simples que qualquer um de nós pode fazer. E se os atletas de elite podem se beneficiar, é muito provável que a pessoa média tentando melhorar o desempenho vai ter os mesmos benefícios.

É interessante notar que apesar de o grupo “sleep-low” realizar as sessões EIAI em um estado de grande disponibilidade de carboidratos ao longo do estudo, eles foram testados em um estado esgotamento das reservas de carboidratos e mesmo assim grandes melhorias foram observadas. Outro ponto relevante é que a manipulação dietética gerou adaptações positivas tanto no teste submáximo quanto no teste supra máximo.

O que aconteceu foi uma adaptação forçada. Ao não ingerir carboidratos imediatamente após a depleção das reservas de glicogênio, o organismo teve que regular positivamente o metabolismo da gordura. Se você somente ingerir carboidratos no dia seguinte após seu treino, faz com seu corpo tenha que funcionar com o que tem disponível: gordura.

Por qual motivo essa melhorar acontece?

Essas adaptações positivas geradas pela manipulação do período de ingestão de carboidratos podem estar vinculadas com um processo chamado biogênese mitocondrial. A biogênese mitocondrial é um processo fisiológico que forma novas mitocôndrias dentro das nossas células, essa formação de novas mitocôndrias ocorre através de um intricado processo bioquímico que possui diferentes estímulos, entre eles o exercício [2]. Para entender a importância da biogênese mitocondrial vamos ver o que são mitocôndrias.

As mitocôndrias são importantes organelas celulares e podem ser consideradas como usinas de força, produzindo energia através da oxidação de carboidratos, gorduras ou proteínas. O resultado dessa oxidação ou “queima” é uma molécula chamada Adenosina Trifosfato (ATP) que pode ser definida como a “moeda corrente” de energia para todos os processos fisiológicos. As mitocôndrias são encontradas nas células de todos os tecidos corporais, inclusive nos músculos. Como as células musculares possuem uma grande quantidade de mitocôndrias elas também possuem uma grande capacidade de produção de energia via ATP para as atividades físicas.





A função mitocondrial pode ser considerada uma importante variável para a saúde já que as pessoas que apresentam deficiência na formação de novas mitocôndrias (biogênese mitocondrial) têm um maior risco de diabetes tipo 2, obesidade e problemas cardiovasculares [3,4]. Então se você aumenta a sua quantidade de mitocôndrias você melhora sua saúde, aumenta sua rede produtora de energia e aumenta também sua capacidade máxima de produzir energia (ATP) durante o exercício [5].




Diferentes trabalhos mostraram que as vias sinalizadoras da estimulação da biogênese mitocondrial são mais sensíveis ao exercício realizado em um estado de depleção de glicogênio do que quando o exercício é realizado com maiores estoques de glicogênio muscular [6,7]. Essa pode ser uma das razões que levaram um protocolo que esgota as reservas de glicogênio muscular em um treino com EIAI seguidas de 15 horas de uma alimentação com abstinência de carboidratos e então a realização de 60 minutos de exercícios aeróbicos de baixa intensidade a gerar adaptações positivas. 




Considerações Finais

Caso você quisesse tentar fazer isso, poderia seguir o cronograma do estudo. Teria que ter um monte de tempo livre e flexibilidade, mas provavelmente iria funcionar.

Se você é uma pessoa normal com uma programação normal, poderia fazer uma versão adaptada. Comer carboidratos antes de seus exercícios de alta intensidade e nenhum depois. Ir para uma caminhada ou uma corrida leve de manhã antes do café da manhã. Comer carboidratos no lanche e no almoço, e talvez um lanche antes de seu treino de alta intensidade. Você provavelmente não precisaria ingerir 6 gramas de carboidratos por kg de peso corporal como os atletas fizeram no estudo. Você somente precisa se certificar que esgotou seu glicogênio e esperar por 12-16 horas para recarregá-lo. Orientação profissional é altamente recomendada para isso.

Dietas “low-carb” tradicionais promovem adaptações semelhantes, mas isso acontece mais lentamente.  A depleção de glicogênio leva um tempo, se você não está realizando sessões de EIAI para que possa acelerar o processo. Eu sei por experiência própria que isso pode funcionar, normalmente de segunda a sexta eu janto (sem restrições de carboidratos), então faço jejum de aproximadamente 13-14 horas, faço minha sessão  de treinamento (EIAI ou TABI), almoço uma refeição com menos de 10 gramas de carboidratos. Depois lancho no meio da tarde e janto por volta das 21 horas (novamente sem restrição de carboidratos). Essa é outra versão de pós-treino com “abstenção de carboidratos”, mas ideia é a mesma. Forçar seu corpo a se adaptar e acelerar a adaptação do uso de gordura, seja para melhorar a performance, a saúde  ou reduzir a gordura corporal.

Carlinhos
treinamentocarlinhos@gmail.com

Referências

[7] Hawley JA, Morton JP. 2014. Ramping up the signal: promoting endurance training adaptation in skeletal muscle by nutritional manipulation.

Nota: Esta postagem é uma tradução adaptada de um texto escrito por Mark Sisson (original aqui). A expressão adaptada significa que em muitas partes não fiz uma tradução literal e sim a tradução do contexto e das ideias. Li o trabalho citado no artigo original e acrescentei algumas informações. Substitui as referências de experiência pessoal do autor pelas minhas experiências pessoais de treinamento.

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